"Ainda esse assunto?!", deve perguntar-se o leitor ao se deparar com o título acima.
Quem haverá de lhe tirar a razão? Tanto a melhor doutrina (Souto Maior Borges, Aliomar Baleeiro, Geraldo Ataliba, Paulo de Barros Carvalho, José Eduardo Soares de Melo, Roque Antonio Carrazza, Alberto Xavier, Hugo de Brito Machado, Sacha Calmon, Gilberto de Ulhôa Canto, entre vários outros) quanto a atual jurisprudência (do STF e STJ) são, há muito, uníssonas no sentido de que, na forma em que desenhados na Constituição Federal, o antigo ICM e o atual ICMS não podem incidir sobre o simples deslocamento de mercadorias de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte.
O que me fez reexaminar esse tema foi a notícia de que a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça remeteu à 1ª Seção recurso especial em que a Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul (PGE-RS) sustenta que a jurisprudência pacífica sobre essa matéria estaria desatualizada, porque não teria levado em consideração o disposto no inciso I do artigo 12 da Lei Complementar (LC) 87, de 13 de setembro de 1996 (que determina o ICMS será cobrado no “momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular").
É verdade que o verbete 166 da Súmula do STJ (segundo o qual “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”) foi publicado no dia 23 de agosto de 1996, antes, portanto, da edição da LC 87/96.
É também verdade que, em 2010, ao examinar a mesma incidência sobre a transferência de bens do ativo permanente entre estabelecimentos do mesmo titular (no julgamento do recurso repetitivo 1.125.133), a 1ª Seção do STJ também deixou de se referir à regra contida no dispositivo da LC 87/96. Mas, ressalte-se que nem era de se esperar outra atitude por parte do tribunal, tendo em vista que essa regra tem por objeto a circulação de mercadorias, e não de bens contabilizados no ativo permanente, o que a torna inaplicável ao caso.
As duas afirmativas acima são verdadeiras. O mesmo não se pode dizer da premissa de que a jurisprudência pacífica do STJ sobre essa matéria não teria levado em consideração o disposto no artigo 12 da LC 87/96. De fato, em outros casos que tiveram por objeto a matéria em exame, julgados por ambas as turmas do STJ, a Fazenda se utilizou expressamente desse argumento (de que a LC 87/96 teria disposto sobre a matéria) e, ainda assim, o tribunal manteve o seu entendimento de que a hipótese seria de não-incidência. Transcrevo trechos (relatório e voto) de dois desses acórdãos, cada um de uma das Turmas do referido Tribunal:
"Em suas informações, o Secretário de Fazenda do Estado do Pará aduziu, preliminarmente sua ilegitimidade passiva ad causam, sob o fundamento de que a competência para a fiscalização da exigência do tributo é dos agentes fiscais lotados nas Delegacias Regionais da Fazenda Estadual, e, no mérito, pela denegação da ordem, porquanto desde o advento da LC n.º 87/96 incide o ICMS sobre a operação de transferência de mercadorias de um estabelecimento para outro do mesmo titular. (...) No que pertine à alegada violação ao art. 12, da LC n.º 87/96, incumbe assentar que o deslocamento de mercadoria para um outro estabelecimento do mesmo contribuinte não constitui fato gerador do ICMS. (Súmula n.º 166, do E. STJ)" (Recurso Especial nº 729.658 – PA, Primeira Turma, 04.09.2007)
"A Fazenda Pública agravante reitera os termos de seu recurso especial, alegando a nulidade do acórdão e a violação do art. 12, I, da Lei Complementar n. 87/96. ... A transferência de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, por si, não se subsume à hipótese de incidência do ICMS, já que para a ocorrência do fato gerador deste tributo é essencial a circulação jurídica da mercadoria com a transferência da propriedade" (AgRg nos EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 1.127.106 – Segunda Turma - RJ, 06.05.2010)
Portanto, é improcedente a afirmativa de que o STJ jamais teria examinado a questão à luz da LC 87/96. O tribunal fez esse exame e não deu qualquer importância ao dispositivo da LC 87/96. Logo, é absolutamente desnecessário o seu reexame pelo tribunal, conforme solicitado pela PGE-RS.
Mas, ainda que esse reexame fosse necessário, será que haveria fundamento para que o entendimento da Súmula 166 fosse modificado somente em razão do que dispõe aquela lei? Parece-me que não.
A competência para onerar “operações relativas à circulação de mercadorias” é exercida pelos estados desde a reforma tributária de 1965, quando foi criado o antigo ICM. Anteriormente, também de competência estadual, era o Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC) que incidia sobre os negócios mercantis. Tratava-se de tributo cumulativo que, como o próprio nome indicava, tinha por pressuposto constitucional de incidência tão-somente a celebração de negócios de venda ou de consignação por comerciantes ou produtores.
Na nova configuração (ICM/ICMS), a incidência passou a obedecer ao princípio da não-cumulatividade e teve os seus contornos constitucionais singelamente definidos na expressão “operações relativas à circulação de mercadorias”.
Nessas quase cinco décadas de existência, muito se discutiu sobre o significado e abrangência de cada um dos três elementos dessa incidência: operações, circulação e mercadorias.
Por “operações” (primeiro elemento), após intensa discussão, prevaleceu o entendimento de que elas configuram todo e qualquer negócio jurídico (e não somente vendas e consignações, como no antigo IVC) do qual decorra a transferência da propriedade de mercadorias. Foi exatamente pela ausência desse pressuposto que, por exemplo, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores impediu a incidência do ICMS sobre bens importados ao amparo de contrato de arrendamento mercantil.
Nesse mesmo diapasão é que deve ser interpretado o termo “circulação” (segundo elemento de incidência). Apesar de a circulação física ser absolutamente necessária à incidência do tributo[1], ela, por si só, não é suficiente para configurá-la. Do contrário, para lembrar o nosso eterno e saudoso mestre Aliomar Baleeiro, ter-se-ia que admitir a tributação de mercadorias que saíssem do estabelecimento em razão de furto ou roubo. Ou, até mesmo, em decorrência de uma enchente, por que não?
A circulação que se pretende tributar é aquela subjacente a um negócio jurídico pelo qual haja a transferência da propriedade de mercadorias (terceiro elemento), ou seja, de bens destinados ao comércio, que constituam objeto das atividades comerciais do seu proprietário.
Em outras palavras, o vocábulo "operações", utilizado constitucionalmente para determinar o campo de incidência do ICMS, impede que o imposto estadual incida sobre saída que não esteja amparada por negócio jurídico mercantil, ou seja, que não tenha conteúdo econômico que viabilize e justifique a tributação.
Na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa, não há qualquer negócio jurídico subjacente. Até porque não há, no Direito brasileiro, como pretender-se a existência de negócio jurídico de uma pessoa consigo mesma. Logo, não há que se falar em incidência do ICMS nessas circunstâncias!
Nesse sentido, é a jurisprudência de ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, como se vê nas ementas abaixo:
“O acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a jurisprudência da Corte que é no sentido de que a mera saída física do bem, sem que ocorra a transferência efetiva de sua titularidade, não configura operação de circulação sujeita à incidência do ICMS, a exemplo do que se observa no julgamento do AI 131.941-AgR/SP”. (STF, 1ª Turma, AgRg no AI nº 693.714-6, Ministro Relator Ricardo Lewandowski, DJe 30.06.09).
“O imposto em causa é devido não pelo mero trânsito de mercadorias, mas, conforme contido na primeira parte do inciso II do artigo 23 da Constituição Federal anterior, pelas operações relativas à circulação de mercadorias. A expressão norteadora do preceito pressupõe, assim, que a circulação se faça com nítido conteúdo econômico, ou seja, implicando transferência da respectiva propriedade a terceiro. Daí a alusão ao vocábulo “operações”, não se podendo enquadrar como tanto o mero fato de um produtor, industrial ou comerciante, proceder à movimentação de um estabelecimento para outro visando, como no caso em questão, à simples pesagem. A própria designação do imposto, no que consagra o emprego do vocábulo “mercadoria”, pressupõe o ato mercantil, encontrando-se a definição do termo no Direito Comercial”. (...) Frise-se, por oportuno, que o Decreto-lei 406/68 equipara a saída de mercadoria à transferência da propriedade, mesmo que não tenha entrado no estabelecimento do transmitente, o que revela ser a transmissão de propriedade pressuposto de incidência.” (STF, 2ª Turma, AgRg no AI nº 131.941-1, Ministro Relator Marco Aurélio, DJe 09.04.91)
"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ICMS. DESLOCAMENTO DE MERCADORIAS. ESTABELECIMENTOS DO MESMO TITULAR. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido de que o simples deslocamento da mercadoria de um estabelecimento para outro da mesma empresa, sem a transferência de propriedade, não caracteriza a hipótese de incidência do ICMS. Precedentes. 2. Reexame de fatos e provas. Inviabilidade do recurso extraordinário. Súmula n. 279 do STF. Agravo regimental a que se nega provimento." (Agravo Regimental no RE nº 596.983/MT, Relator Ministro EROS GRAU, em 12.05.2009, Segunda Turma)
“No entanto, a controvérsia relativa ao fato da circulação da mercadoria se dar entre diferentes estados não rende ensejo à modificação do julgado. Isto porque o Supremo Tribunal Federal consolidou seu entendimento no sentido do acórdão embargado, ou seja, o ICMS não incide sobre o deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro da mesma empresa, sem a transferência de propriedade, ainda que se trate de circulação interestadual de mercadoria. Significa dizer que a não-incidência do imposto deriva da inexistência de operação ou negócio mercantil havendo, tão-somente, deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro, ambos do mesmo dono, não traduzindo, desta forma, fato gerador capaz de desencadear a cobrança do imposto”. (STF, 2ª Turma, ED no AgRg no RE nº 267.599, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJe 06.04.10)
“No mérito, conforme afirmado na decisão agravada, o Superior Tribunal de Justiça decidiu em conformidade com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, que assentou que não incide o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS no deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro da mesma empresa, sem a transferência de propriedade” (STF, 2ª Turma, AgRg no RE nº 466.526, Relatora Ministra Carmen Lúcia, DJe 18.08.12)
Mas, se a matéria já estava (e continua estando) tão bem definida pela jurisprudência, em sentido contrário à incidência, o que teria levado o legislador complementar a editar norma que expressamente prevê a tributação das saídas de mercadorias, “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular” (LC 87/96, art. 12, I)?
Nada há nas discussões parlamentares relativas a essa LC que nos leve a qualquer conclusão. O referido dispositivo não constava do projeto original e foi nele inserido por emenda apresentada sem qualquer justificativa que a fundamentasse.
Ficamos, então, por conta da nossa criatividade.
Talvez o legislador tenha querido viabilizar, na prática, a transferência de créditos de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte, nas hipóteses em que houvesse transferência de estoque entre eles. Como a Constituição determina o estorno de créditos nas saídas isentas e objeto de não-incidência, se não houvesse regra semelhante à ora examinada, o contribuinte teria que estornar os créditos relativos ao ICMS incidente na aquisição do estoque, e não teria como transferi-los ao estabelecimento que fosse gerar a saída tributada.
Se tiver sido esse o objetivo, ele terá sido louvável! Mas, desde que o dispositivo seja sempre assim interpretado: como mero instrumento para permitir a transferência de créditos de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte; e, jamais, para impingir a esse mesmo contribuinte o pagamento do tributo acrescido de multas nas operações em que, por qualquer razão, o imposto não tenha sido por ele destacado.
Uma segunda possibilidade é a de que esse mesmo legislador, pressionado pelas Fazendas Públicas estaduais[2], tenha inserido na lei complementar de regência norma que, apesar de configuradora de absoluta extrapolação dos parâmetros constitucionais que limitam a competência tributária estadual, permita aos estados rediscutir a matéria em juízo, na tentativa de reverter a jurisprudência já pacificada à época da sua edição.
Nessa hipótese, é dever de todo e qualquer julgador declará-la inconstitucional!
[1] abrindo-se exceção somente às ficções e presunções expressamente previstas na legislação, como, por exemplo, a transmissão da propriedade de mercadoria, ou de título que a represente, quando a mercadoria não transitar pelo estabelecimento transmitente.
[2] Que, obviamente, pretendiam manter na LC normas que haviam sido por elas mesmas inseridas no Convênio ICM 66/88, independentemente de serem, ou não, constitucionais.